quarta-feira, setembro 29, 2010

"Um sopro no coração"

Andava eu a vasculhar gavetas em busca do meu boletim de vacinas quando dou de caras com uma folha retirada de uma revista, cuidadosamente guardada numa mica. 

"Andava eu pelos dezanove anos e acabara o primeiro ano da faculdade. Aquelas férias de natal foram uma farra constante porque então tinha muitos amigos e todo o tempo do mundo. Ganhara a carta de condução e o velho Wolseley dos meus avós. E eram festas e licores e "whiskies" e comezainas e todos os excessos que caracterizam os natais insulares. E precisamente na véspera do regresso ao exílio coimbrão, adoeci. Cólicas, náuseas, vómitos, febre, um mal-estar a abalar-me todo. Como em casa de ferreiro, espeto de pau, fui ao dr. Rui, o colega do meu pai que nos aturava. O senhor virou-me do avesso. E, para grande espanto, por mais que me queixasse da barriga, fixou-se no peito. Franziu a cara, enrugou a testa, apurou o ouvido, voltou a auscultar, mudou-me de posição, voltou a mudar, por fim sentou-se, pousou o estetoscópio e declarou solene: "Tens um sopro no coração!"
Borrei-me de medo. Não sabia o que aquilo era, nem me atrevia a perguntar. "Um sopro sistólico por provável lesão mitral", concluiu, mais preciso.
Foi o pânico. Porque nessa idade eu não sabia que, por detrás dos aparatosos palavrões médicos, escondem-se coisas simples; ou, então, são pompas, cortinas de fumo para mascarar o quão pouco sabemos da máquina humana. Porém, naquele momento, uma coisa aprendi: frente ao médico, paramentado de estetoscópio e bata branca, investido no poder do seu saber, nós, os pacientes (não seria melhor "sofredores"?) lemos mais na expressão do rosto e nos cuidados postos na observação do que propriamente nas palavras ditas. E, naquele susto, esqueci-me das cólicas intestinais. Desapareceram.
Ainda nessa manhã rumei ao cardiologista, outro velho conhecido, que me recebeu numa festa: "Ah, isso não tem importância." Seguiu-se o ritual do electrocardiograma, à época um aparelho enorme, cheio de fios. E ali estendido, todos ligado, só ventosas, eléctrodos e braçadeiras, lembrava-me do laboratório do dr. Frankenstein, das séries negras americanas. Voltou o terror. Porque, enquanto me vestia, vislumbrei no gabinete ao lado o dr. Semião, atento, descodificando aqueles metros de papel, com a ajuda de uma lente e de um poderosíssimo foco luminoso. "Estou arrumado", pensei. Mal sabia que o senhor disfarçava uma grave doença ocular, à beira da cegueira. E ao dia seguinte apanhei o barco de regresso, com o meu pai, cara de caso, à despedida, que nada daquilo era grave, mas que não me esquecesse de ir ao médico mal chegasse a Coimbra. 
Decidi-me pela sumidade da moda, um distinto professor com consultório nas Avenidas. Era um Príncipe todo cheio de nove horas. Matematicamente, às cinco da tarde, interrompia as consultas para o chá com torradas. O qual atravessava, imponente, a sala de espera, num belo serviço de prata. E um gabinete nos conformes, móveis de estilo, tudo torcidos e tremidos, onde naufraguei afundado num sofá baixinho frente à enorme secretária de pau santo, do alto da qual o Príncipe nos esmagava em olhar "plongé". Seco, confirmou o diagnóstico. Nem piei.
Mas passei os três meses seguintes com medo de o coração falhar, a ver o pulso, a tensão, o branco dos olhos, e julguei que morria ao descobrir umas manchas violáceas nas articulações dos dedos. E hesitava sobre a melhor estratégia de sobrevivência: se vigilância apurada com consulta ao catálogo das doenças, se ignorar a realidade. Tornei-me num hipocondríaco profissional. Mas é trágico ter-se 19 anos com um sopro no coração e pensar que nos resta pouco tempo. E comecei a sofrer de enxaquecas, náuseas, vómitos e a vista a desfocar e metido no quarto às escuras, invadido de profunda tristeza. Sofria. Com saudades da vida. Até que uma tarde, ao passar no largo da Portagem, esbarrei com uma placa. Dizia :"Cardiologista".
Não era príncipe nem amigo da família. Apenas um cordial desconhecido, sentado num vulgar gabinete, olhando naturalmente as pessoas. Ouviu-me. Percebeu a minha infelicidade. Resistiu à tentação de me dar pastilhas para os nervos (felizmente há 30 anos a farmacologia da alma não tinha o "marketing" que hoje lhe conhecemos). Perdeu meia hora desdramatizando o medo da doença. Paciente, incentivou todas as perguntas possíveis. Saí aliviado, a saber que poderia fazer tudo, excepto correr a maratona, praticar atletismo de competições e exercícios violentos. 
A medicina é uma arte. Acho que aprendi mais naquela tarde do que no resto dos meus anos de faculdade. A relação. Entender e vivenciar a angústia do outro. Alguém que está fragilizado perante o médico. Tenso. E que lê mais nos silêncios e omissões do que nos discursos e afirmações. É terrível estar-se investido nesse poder mágico de curar pessoas. Quanto ao sopro, foi bom. Livrou-me da tropa."

                                                                                                      crónica de Ricardo França Jardim
"Um sopro no coração" in revista Pública
27 de Julho de 1997

Reli esta crónica e situei-me no tempo: estava à espera dos resultados da minha segunda candidatura a Medicina. Acreditava que ia conseguir. Por isso chorei tanto quando soube que não entrei. Mas não desisti; no ano seguinte voltei a tentar. E a falhar. E agora, 12 anos passados, volto a ler esta crónica e a sentir-me como me senti em 1997: com esperança de conseguir ser a médica num vulgar gabinete. Há que saber desistir, mas acho que ainda não é agora. Ainda lá vou mais uma vez... Desta vez a última. Mas vou. 

sábado, setembro 25, 2010

Me liga, vai... ou talvez não!

Não gosto de falar ao telefone. É verdade, sou mulher e abomino falar ao telefone. Eu preciso de contacto visual; pela expressão de uma pessoa eu consigo perceber o rumo da conversa, coisa que é difícil perceber pelo telefone (embora com pessoas que já conheço muito bem consiga fazê-lo). Daí se percebe que falar com pessoas que não conheço ou que conheço não muito bem provoque em mim um certo desconforto. Se conheço a pe
Nssoa, a coisa torna-se mais fácil porque consigo visualizar a pessoa e até posicioná-la num determinado cenário, tipo sentada no sofá ou numa cadeira na sala. O tom de voz é-me familiar e por isso tenho perfeita noção se a conversa está a fluir bem ou se liguei em má hora, consigo perceber se me está a despachar porque até tem o jantar ao lume ou porque está a ver televisão e não apanha metade do conteúdo da conversa. Isso, de certo modo, deixa-me mais confortável, apesar de não existir o contacto visual. Se não conheço a pessoa, tento imaginar como ela é, construo uma imagem de quem está do outro lado da linha. O tom de voz é-me perfeitamente desconhecido mas como quando ligo para pessoas que não conheço é para tratar de alguma coisa, não me interessa se me está a despachar ou não; quero é tratar do meu assunto e pronto.
Agora quando a pessoa do outro lado do telefone é um misto de conhecido-desconhecido, a coisa piora um pouco. Primeiro, consigo visualizar a pessoa porque a conheço mas não a consigo situar num determinado local porque, ao mesmo tempo, a desconheço. Depois, não consigo perceber na voz se está contente por estar a falar comigo ou se liguei numa péssima hora, até porque pode estar a ser educada em estar a ouvir-me quando, na realidade, queria era mandar-me passear e desligar o telefone. E depois é o nervosismo de estar a falar com uma pessoa que conheço mais ou menos mas que não vejo e, por isso, não consigo avaliar o grau de interesse na conversa. Aí vem o ataque de insegurança e o nervosismo e o trocar as palavras todas e o falar depressa depressa, antes que a pessoa se canse de me ouvir e eu não consiga dizer tudo o que quero. Isso é desgastante para mim, e por isso detesto falar ao telefone, mesmo quando me apetece ouvir a voz de alguém que está longe. Faz-se o “sacrifício”, até porque ninguém me obriga a ligar, mas quando desligo fico com a sensação que fui trapalhona, que me atropelei no meio das palavras e sinto-me uma adolescente desajeitada. Apesar das 32 primaveras já vividas, no que toca a conversas telefónicas, continuo a ser uma adolescente tímida, embora reze a história que as adolescentes gostam de falar horas e horas ao telefone. 

domingo, setembro 05, 2010

Mais um Verão

Praia da Ribeira do Cavalo, Sesimbra
E "prontos", mais um Verão está prestes a passar. Setembro já chegou e as férias, cheias de praia e sol e areia e mar e amigos e gelados, já lá vão.
Foi um Verão preenchido, poucos foram os fins de semana que passei no Fundão; acho que o meu lema de vida  "carpe diem" vai ser transformado em "carpe diem, o que se leva da vida é o que se goza". Gozei a praia, os amigos, as noites quentes (e se foram quentes, este ano...), experimentei coisas novas e aventureiras, o que deu para ver que a minha relação com a adrenalina está mais pacífica.
Com o terminar do Verão e o aproximar do Outono, começo a ficar melancólica. O mês de Setembro sempre foi um pouco deprimente para mim; apesar de gostar da escola, era sempre uma altura de mudança de rotina e isso perturbava-me um pouco. Ainda hoje, quando chego a Setembro, e principalmente quando chove, tenho exactamente a mesma sensação que tinha quando era miúda e começava a preparar o material para a escola. Sinto-me melancólica e, por que não dizê-lo, até um pouco triste.
De qualquer maneira, e como para mim isto dos blogs é um pouco sazonal, cheira-me que vou começar a escrever mais. Estou de volta ao meu cantinho à "beira-net" plantado.