sábado, março 15, 2014

Borboletas II

O facto de nos fixarmos numa coisa e tudo à nossa volta ficar em câmara lenta traz um inconveniente: perdemos a noção da perspectiva e o que nos rodeia, mesmo em câmara lenta, perde a nitidez. E o que está a passar ao nosso lado, lentamente, pode ser algo espectacular que nos vai escapar se não formos capazes de nos desligar da nossa fixação e não nos fixarmos no que nos rodeia.
A "platonicidade" pode ser engraçada e fazer-nos sentir a flutuar mas não se compara, nem nunca se comparará, ao sentimento de reciprocidade. A "platonicidade" pode fazer-nos sentir que tudo à nossa volta está em câmara lenta mas a reciprocidade faz desaparecer o que nos rodeia, tira-nos verdadeiramente o sono e o apetite, põe-nos um sorriso parvo e constante nos lábios, faz-nos sentir leves. 
Existe a probabilidade de a reciprocidade ser platónica mas essa dúvida, apesar de ser incómoda, traz algum encanto à situação. A dúvida sobre a reciprocidade pode baralhar-nos, levar-nos a questionar coisas que, por vezes, são evidentes mas que não conseguimos aceitar como tal porque, precisamente, temos dúvidas. Revemos a situação milhares de vezes, analisamo-la de diversos ângulos, e mesmo quando as evidências apontam para a reciprocidade, pomos mais uns quantos "mas" pelo meio e continuamos na dúvida.

Mas mesmo com a dúvida pelo meio, a reciprocidade é mil vezes melhor que a "platonicidade". Porque quando dois olhares se encontram e se demoram um no outro, uma e outra e outra vez, tudo à nossa volta não fica em câmara lenta; simplesmente, tudo o que está fora dessa troca de olhares deixa de existir; os sons não ficam abafados, os sons desaparecem e só conseguimos ouvir o esvoaçar de milhares de borboletas nas nossas entranhas. É nesse momento que a dúvida surge, "é casual?, aconteceu?, está alguma coisa interessante atrás de mim?". E quando os olhares se encontram de novo a dúvida dissipa-se, mesmo que temporariamente. E as borboletas nas entranhas ficam ainda mais alvoraçadas. 
A reciprocidade, mesmo que duvidosa, não faz falhar batimentos cardíacos nem torna o ar rarefeito; faz sim o coração bater desalmadamente e ritmadamente, faz-nos respirar fundo e dá-nos vontade de rir, aquele riso nervoso e miudinho, sem qualquer motivo, mas que nos faz sentir tão bem.
A reciprocidade adormece e acorda connosco; faz-nos reviver mil vezes a situação e mil vezes sentimos as borboletas esvoaçar, o bater ritmado do coração e uma vontade de rir difícil de controlar.
A reciprocidade tolda-nos um pouco o discernimento, embota a escrita, torna o pensamento menos fluido porque a nossa mente está presa naquele momento, naquele preciso momento em que tudo o que está fora dos dois olhares que se encontram desaparece. Faz-nos ficar a olhar para o vazio, com um sorriso nos lábios e um calorzinho bom a espalhar-se dentro do nosso peito. 
Mesmo com dúvida, a reciprocidade dá-nos a certeza de que sabem que nós existimos, dá-nos a certeza que nós sabemos que existimos. Faz-nos sentir vivos, alvoraçados, como se nós próprios fôssemos borboletas nas entranhas de alguém. 




domingo, março 09, 2014

Borboletas

Odeio a forma como me fazes sentir. Odiar talvez seja um verbo muito forte; reformulo - tenho pena que me faças sentir da forma como me sinto quando me lembro que existes. Não porque não goste de ti; antes pelo contrário, tenho pena que me faças sentir da forma como me sinto quando me lembro que existes precisamente porque gosto de ti.
Não posso dizer que te amo porque nem sequer te conheço. Talvez esteja apaixonada porque quando alguma coisa me lembra que tu existes parece que me falta o chão debaixo dos pés, que o ar fica rarefeito e que, por momentos, o meu coração falha um batimento. Mas a paixão é algo mais forte do que a forma como eu me sinto quando me lembro que tu existes. E, estando apaixonada, não seria por ti, mas sim pela imagem que eu construí de ti, que nem sei se é verdadeira. Quando me lembro que existes sinto-me arrebatada. É isso, estou arrebatada por ti.
Quando alguma coisa me lembra que tu existes sinto-me arrebatada e com pena. Com pena de não ter sabido da tua existência noutro tempo, noutro contexto. Com pena de termos tanto em comum e nem nos conhecermos. Com pena que tenhas um papel tão importante na minha vida e nunca o venhas a saber.
Tenho pena que, quando te vejo, tudo à minha volta pareça ficar em câmara lenta, que os sons fiquem abafados e que os meus olhos não consigam fazer mais nada a não ser seguir-te. E depois tu desapareces e tudo volta ao normal excepto eu. Eu fico arrebatada, com pena de não te conhecer. Com pena de quase ser tua e tu nem saberes quem eu sou.
Tenho pena de não perceber como podes arrebatar-me desta forma, há tanto tempo, sempre com a mesma intensidade; pensei que, com o tempo, a força do arrebatamento fosse diminuindo mas enganei-me. Posso passar dias sem me lembrar que existes mas sempre que me lembro fico tão arrebatada como da primeira vez que me arrebataste. Nesse dia, os sons não ficaram abafados, a tua voz era a única coisa que se ouvia e, nas minhas entranhas, milhares de borboletas esvoaçavam e eu senti-me tonta, nervosa, com vontade de rir mas sem o poder fazer. Nessa noite quase não dormi, as borboletas não deixaram. Ultimamente, as borboletas estão mais calmas ou então já me habituei ao seu esvoaçar e não me parece tão forte. Agora o arrebatamento, esse continua igual.
Toda a pena que sinto reside na "platonicidade" deste arrebatamento. Porque sinto que se tudo isto não fosse platónico nos íamos dar muito bem. Se eu te conhecesse e tu me conhecesses, talvez até fossemos felizes para sempre, quem sabe.
Tenho esperança que um dia as borboletas se fartem das minhas entranhas e esvoacem para longe; que, quando me lembrar que tu existes, não me falte o ar ou um batimento cardíaco; que quando te vir tudo à volta não fique em câmara lenta e que os meus olhos consigam seguir outra coisa que não tu. Não quer dizer que deixei de gostar de ti. Quer dizer que deixei de ser arrebatada por ti.